segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Minha Saga


Por acreditar que cada um de nós tenha pelo menos uma história na vida para relembrar e sempre com muita satisfação, conto uma das minhas sem pretensão alguma, a não ser porque, recordar é viver.
No final da década de 1960, o sul do Brasil experimentava um fantástico desenvolvimento na sua agricultura que sempre praticada de forma manual e muito rudimentar, encontrou então, na mecanização a possibilidade de expandir a produção de trigo, tornando o país quase autossuficiente e transformando áreas de terra planas que durante séculos formaram fazendas de criação de gado, em trigais que se perdiam de vista.
Nessa mesma época, iniciou-se também, com a evolução da mecanização das lavouras no Brasil, uma nova cultura, a da soja, que no sul, formou a famosa dobradinha trigo-soja, com os campos plantados, no inverno com trigo e no verão com soja. Esse binômio formou um casamento tão perfeito que até hoje perdura e pode-se dizer que foram essas duas culturas, levadas por gaúchos, tomando conta dos campos nativos do Paraná, avançando também sobre as florestas – antes pinheirais – e prosseguindo na sua caminhada, a lavoura mecanizada foi mais além. Hoje, apesar da cultura do trigo ter caído a níveis mínimos, as lavouras de soja tomaram conta de todos os campos e agora acaba de dominar também os cerrados brasileiros e o plantio da soja hoje, se faz em quase todos os estados brasileiros, em alguns inclusive, é hoje e grande alavanca de desenvolvimento.
As imagens da cidade de Carazinho, no Rio Grande do Sul, com suas ruas tomadas por enormes camadas de trigo secando ao sol, porque os poucos e pequenos armazéns não tinham capacidade de secar e guardar tanto trigo, tão grande fora a safra, ainda estão bem nítidas até hoje na minha memória. Aquilo aconteceu no final da década 1960 e foi a motivação para a grande arrancada da agricultura brasileira.
Numa família de madeireiros, alguns de nós, tornaram-se agricultores quase por obrigação, já que como madeireiros havíamos acabado com os pinheiros, só nos restava a opção de aproveitarmos a exuberância daquelas terras paranaenses, destoca-las e aproveitar para lançarmo-nos também na agricultura mecanizada, assim como tantos outros o fizeram.
Boas safras, com bons lucros, estimularam o desejo para expandirmos as lavouras e o entusiasmo próprio dos jovens somado ao impulso aventureiro, nos trouxe ao Mato Grosso – ainda Estado uno, já que o ano era 1971 – e a lembrança daquela primeira viagem para estas terras, jamais será possível esquecer.
Por três caminhos se poderia, no ano de 1971, chegar de carro aos campos de vacaria no Mato Grosso, de onde já tínhamos informações as terras seriam próprias para lavouras mecanizadas. O primeiro seria por Presidente Epitácio, numa estrada federal e de bom tráfego. Outro seria pelo Porto Caiuás, por estrada de terra batida dentro do Paraná e no Mato Grosso através de uma picada, onde já trafegavam até caminhões desde o Rio Paraná, passando pela vila de Naviraí – recém fundada – até a cidade de Dourados e o terceiro, cruzando o Rio Paraná numa balsa, atingir a vila de Iguatemi e através de estradas que serviam fazendas alcançar a cidade de Amambaí. A estrada federal que hoje liga Naviraí à Mundo Novo, não estava ainda nem nos projetos, foi aberta alguns anos mais tarde.
O caminho que escolhemos para conhecer os campos das vacarias, foi entrarmos pelo sul do Estado, onde hoje é Mundo Novo. O primeiro dia da viagem, dentro do Mato Grosso, foi todo gasto com a travessia numa balsa no Rio Paraná, em desatolarmos várias vezes a caminhonete, passarmos pela fiscalização num posto avançado do Exército que se encarregava da segurança pública num loteamento de terras promovido pelo INDA, depois alcançamos a vila de Iguatemi, onde conseguimos um almoço, num pequeno galpão de tábuas lascadas, já que não havia sequer um hotel, - aquele churrasco de carne gorda com mandioca, certamente foi o nosso batismo num dos almoços típicos dos sul-mato-grossenses; gosto que graças a Deus ainda perdura até hoje e que pessoalmente continuo apreciando. Nesse primeiro dia chegamos, altas horas da noite, à cidade de Amambaí e nesse último trecho ficou-me na recordação as dezenas de porteiras que precisei abrir. Foram 16 horas de viagem, aproximadamente.
Amambaí já era uma bela cidade, onde ao seu redor, já se viam algumas lavouras mecanizadas de porte médio e por isso não foi difícil localizar alguns daqueles gaúchos e paranaenses, plantadores de soja, para arrancarmos algumas informações. Já pela manhã bem cedo, nos enturmamos numa roda de chimarrão e antes do meio dia já estávamos visitando as terras lavradas de alguns agricultores – era o mês de outubro, quando a terra já está pronta para o plantio – e meu irmão já empolgado, nesse primeiro contato, criou simpatia por aquelas terras e disse estar disposto a comprar uma área e mudar-se com sua família para o Mato Grosso.
Durante dois dias pesquisamos áreas à venda e as visitamos, mas acabamos concordando que primeiro precisaríamos conhecer outras regiões desde Estado, para depois, numa segunda viagem, tomar a decisão mais correta.
As informações que recebemos dos novos amigos em Amambaí, nos deixaram muito curiosos e estimulados afim de conhecermos a Fazenda Campanário, já que ela fazia parte da história do Mato Grosso, tendo sido durante décadas praticamente a capital do sul desse Estado, principalmente pela sua importância no trabalho com o extrativismo da erva-mate. Para isso, tomamos um caminho meio abandonado que diziam nos conduziria também a Caarapó. Infelizmente nossa tentativa foi frustrada nos primeiros dez quilômetros quando atingimos o primeiro riacho com a ponte totalmente destruída e nos impedia prosseguirmos. A solução foi voltarmos e viajarmos pela estrada, por sinal muita boa e bem conservada, que liga Amambaí à Ponta Porã. A curiosidade pela Fazenda Campanário ficou para outra oportunidade. 
Em Ponta Porã havia também, como em Amambai, uma grande movimentação de compradores de terras e notava-se um grande fluxo de caminhões carregados com mudanças, onde famílias inteiras chegavam acomodadas dentro de uma carroceria, entre armários, colchões e sempre, lá atrás, alguns animais domésticos completando a carga daquilo que naturalmente dentro em pouco, no interior de alguma fazenda, se transformaria em mais um lar de um novo agricultor mato-grossense.
À tardinha atravessamos a larga Avenida Internacional e visitamos Pedro Juan Caballero, mas a meia dúzia de pequenas lojas apenas tinham para venda o Whiskey escocês e o comercio de bugigangas estava apenas começando, não havendo nada de interessante para se comprar. Contrabando já se fazia e muito, mas era com café brasileiro via Paraguai que alcançava os portos da Argentina e Chile, para depois atingir o mercado mundial; por isso se compramos alguma coisa não lembro. A solução foi dormirmos cedo, já que a recomendação era não sair do hotel à noite – parece que os tempos não mudaram muita coisa, por sinal – mesmo porque queríamos levantar mais cedo.
Madrugada de um lindo dia de sol, enveredamos por uma pequena estrada rumo à cidade de Maracajú, atravessando a enorme Fazenda Mate Laranjeira – onde depois instalou-se a Fazenda Itamarati – e antes de atingirmos o rio Dourados, avistávamos, junto com manadas de gado, cervos de galhadas enormes e veados campeiros que nos espiavam desconfiados, como se já estivessem prevendo sermos daqueles que se propunham a vir com tratores e arados para desmanchar-lhes as pastagens, que lhes davam o sustento. No que não se enganaram. Infelizmente, para eles.
Logo após a passagem do rio Dourados, feita sobre uma boa ponte de madeira, um peão de cima do seu cavalo, nos informava que aquela imensa lavoura de quase dois mil hectares de arroz recém plantado era de um gaúcho chamado Erwino Eberhard. Se já estávamos empolgados, imagine-se como ficamos depois de ver tanto arrojo num agricultor só.
Mais algumas dezenas de quilômetros e atravessamos o rio Santa Maria, também por sobre uma ponte de madeira bem novinha e quando lá na frente, nos deparamos com outra lavoura nova de arroz, perguntamos ao fazedor de cerca na beira da estrada, pelo nome do novo agricultor, que nos disse não saber. Quando já nos preparávamos para prosseguir nossa viagem, resolvi, já dentro da caminhonete, perguntar-lhe de que região do Rio Grande era o gaúcho e pensando um pouco ele respondeu: Pato Branco.
Patobranquenses e gaúchos éramos nós também e apesar dele não saber que Pato Branco é um município do Paraná, fizemos meia volta e entramos na Fazenda Restinga, onde localizamos o arrendatário o nosso amigo e conterrâneo Rossoni e apresentados por ele, fomos brindados com um lauto almoço pelos proprietários, o casal Placides e Anunciata Ferreira. Depois disso, a viagem até Maracajú foi só alegria.
A beleza dos campos de Maracajú nos encantou tanto que dois dias foram o suficiente para decidirmos pelo arrendamento de uma área de mil hectares, próxima à Sete Voltas e lá mesmo tomamos a decisão que no ano de 1972, faríamos a abertura dela, plantando-a toda com arroz. É bom que se diga, para se fazer uma lavoura nova, sempre se começa com um primeiro plantio de arroz, até mesmo o segundo se houver muitas raízes de guavira, - aquele arbusto que produz uma das frutas mais gostosas que já provei – por ser a planta de arroz mais rústica e de colheita mecanizada mais fácil. Depois então, aplica-se calcário e inicia-se os plantios de soja.
Com um contrato de arrendamento debaixo do braço, rumamos na direção de Dourados, cidade que todos nos afirmavam estar tendo uma verdadeira explosão de desenvolvimento e a premonição já sinalizava, lá, seria o lugar que nos encantaria de vez.
A expectativa foi superada pelo deslumbramento visual. Nem imaginávamos encontrar uma cidade contando com dois cursos superiores funcionando! Eram duas Faculdades instaladas. No ensino, para quem tem filhos menores e pretende dar-lhes uma boa educação, morar onde se tenha a possibilidade de formá-los, mantendo-os perto de casa, é importante demais para os pais. 
Só com essa constatação, meu irmão já estava decidido: no próximo ano estaria morando em Dourados e iria iniciar a lavoura em Maracajú.
Outras constatações fomos fazendo, como o grande número de serrarias funcionando naquela época, dentro da cidade e nos seus arredores. Lembro que o número delas, trinta e duas, fornecido na Prefeitura, era o mesmo das que funcionavam no Sudoeste paranaense e lá, trouxeram tanto desenvolvimento. Não poderia ser outra a primeira comparação que fizemos, já que essa atividade a conhecíamos bem, afinal, ainda éramos industriais da área da madeira. 
No Paraná a indústria madeireira, alavancou o desenvolvimento da metade sul do Estado e o café, auxiliado pelo algodão, foram as responsáveis pela criação de todas aquelas ricas cidades do Note do Estado. Por isso, depois que constatamos o potencial madeireiro de Dourados, nossa surpresa foi grande ao vermos as enormes pilhas de fardos de algodão da Sanbra, enfileiradas à beira da Avenida Marcelino Pires. A cafeeira Bianchini que naqueles tempos trabalhava exclusivamente recebendo e beneficiando café, foi a sinalização de que aqui também se produzia café.
Dourados nos mostrava que possuía, já em franca exploração, os três segmentos produtivos que formaram o desenvolvimento do Paraná; não seria ilusão nossa então, pensar que aqui seria o Canaã, a terra prometida, tendo todos os indícios para se tornar uma das regiões mais promissoras do Brasil.
Com todo esse potencial que acabávamos de constatar, não foi exagero naquela época – era o mês de outubro de 1971 – imaginar que numa década, a cidade de Dourados estaria rivalizando com Maringá, ou até mesmo confrontando com Londrina.
Assim, quando as informações no chegaram de que uma área de terras próprias para lavoura mecanizada, localizada bem próxima ao aeroporto de Dourados, estava à venda, a decisão foi rápida, poder-se-ia até dizer fulminante, porque três dias após, já estávamos na posse dela. Aquele impulso um tanto de alto risco, como negócio, talvez tenha sido influenciado pela proximidade com um campo de aviação, já que pessoalmente sempre fui apaixonado por aviões, tanto que tenho um certo orgulho ao dizer que completei cinco mil horas de voo como piloto e continuo voando até hoje; mas isto é outra história.
A decisão de aqui residir acabou não sendo apenas do irmão, mas de ambos e foi assim que nos tornamos mato-grossenses.
Nesses anos todos dedicados à labuta agrícola aqui, assistimos a morte prematura do ciclo cafeeiro, com a grande geada de 1975. Os baixos preços internacionais, tanto para o café, como para o algodão, não criaram mais estímulos para desenvolver essas culturas que com os custo altos foram sendo substituídas pelas pastagens, principalmente para a engorda de bois, bem mais rentável. Quanto à madeira, a quase extinção do seu ciclo, já foi um processo praticamente natural, pelo esgotamento das nossas florestas.
Se nossas previsões de um grande desenvolvimento, não se realizaram integralmente, mesmo assim boas lembranças e muito boas histórias vivi aqui, mas dentre elas, com certeza, nenhuma trouxe entusiasmo que se equivalesse aos primeiros dez dias daquela minha saga.

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