segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

O gato amarelo

Vice-Presidente da UBE-MS
Imagem: dogville.com.br

As nuvens cinzentas agruparam-se e demonstraram a força de uma chuva forte pela frente. O homem, mais que depressa, pensou em abrigar o carango, pois assim era como chamava seu veículo de cor prata. Depois de duas tentativas para dar a partida – raramente pegava na primeira – o carango funcionou e foi lentamente colocado no fundo da garagem, que tinha espaço de sobra para até dois veículos. Assim que desligou, o homem pegou um pedaço de pano, um balde com água e deu um trato no possante.
Por de trás, de soslaio, um gato peludo amarelado espreitava o engenho humano e seu desperdício de energia em coisa tão sem propósito, pensava o bichano. O homem, concentrado, ignorava que alguém, ou alguma coisa, o observava.
Assim que terminou a limpeza, quase completa, sentiu fortes dores na coluna. Puxou um banco e sentou-se. Com um sorriso levemente armado contemplava seu feito. Um sentimento de crença e fidelidade no plano de manutenção e conservação de seu bem durável tomou-lhe por inteiro. Aliás, era seu único patrimônio.
Ao cair da tarde, lavada pela chuva, o homem recolheu-se aos seus aposentos. Assim que percebeu segurança, o gato saiu de seu covil e iniciou sua ronda de reconhecimento.
— O que será essa engenhoca? Pensou o gato consigo mesmo ao inspecionar o veículo.
— Os humanos são tão soberbos e, ao mesmo tempo, tão dependentes, concluiu o gato.
Depois de passear e rodear pelo veículo, o bichano resolveu fazer algo inaceitável pelo proprietário: tocar no carango. Se tinha uma coisa que mais o irritasse, na vida, era emprestar seu carro. Até mesmo para sua mãe. 
Logo ao primeiro cantar do galo o homem pulou da cama e vestiu-se rapidamente. Andou até a porta da cozinha e notou que a chave não estava na fechadura e, muito menos, no claviculário. Sentiu uma leve irritação momentânea. Decidiu acalmar-se e examinar na prateleira, nas gavetas, dentro de algumas panelas amassadas de alumínio. Nada da chave.
— Caçarola! Bradou. Por mais que procurasse era inútil.
— Mas que raio de chave. Criou pernas?
Indignado, o homem ficou ainda mais nervoso. Pela janela o gato observava tudo atentamente. A janela era razoavelmente alta e, de cima do veículo, o gato tinha uma vista privilegiada do interior do cômodo. De um relance, o homem viu o gato deitado sobre o teto do veículo. Uma fúria tomou conta de seu interior a ponto de sentir suas entranhas arderem.
— Que raiva desse infeliz bichano desavisado e sem noção – resmungava o homem.
Na sua infância, o homem vivenciou um episódio dramático que o levara a ter ódio de toda e qualquer espécie de gatos. Tinha lá seus sete ou oito anos de idade e estava na casa de sua avó materna. Brincava com um gatinho que achava muito bonito. Certa tarde, a família encontrava-se sentada sob a sombra de um pé de sinamão e o menino veio com o gatinho em seus braços. Brincando por ali, encostou-se em um opala azul que era de um amigo de seu pai. Como toda criança de sua idade não pensava que suas brincadeiras causassem qualquer problema.
Colocou o gatinho sobre o capô do opala azul e brincava feliz da vida. Quando o homem viu o gatinho andando e riscando a pintura polida do opala, deu um grito e atirou o pobre bichano ao chão. Enraivecido, despediu-se e foi-se embora. O menino levou uma surra e, desde então, traz em seus registros mais secretos a ojeriza por gatos.
Tempos depois, encontrava-se sozinho na cozinha de sua casa e cometeu um ato terrível. Pegou uma gatinha pequena que era de sua mãe e a jogou no poço da casa. Doze metros depois, a gatinha estava no fundo do poço, semelhante a muitos humanos. Por mais que sua mãe tentasse salvá-la, era impossível. A gatinha subia no balde e, ao ser içada, a certa altura saltava e caia novamente afogando-se. Foram várias as tentativas para salvá-la. Parecia até que a gatinha queria mesmo era pôr um fim à sua curta vidinha.
Como um relâmpago, o homem reviveu o acontecimento da infância e sentiu ainda mais raiva do gato sobre seu carango.
— Ah se eu acho essa chave... Aquele gato não perde por esperar.
Quanto mais procurava, mais não encontrava. O sentimento de raiva elevou-se e, agora, o homem desejava dar cabo do gato atrevido e, mesmo fazendo acenos e gritando, o gato parecia ficar imóvel, de propósito e com aquela cara de sarcasmo.
— Saia daí, seu infeliz! Esse carro está encerado. Sai!
Era como se o homem falasse a língua dos homens. O gato nem aí para ele. Fazia questão de não entender. Seus olhos eram como dois grandes pontos negros, como pontes para o infinito e além. A raiva que o homem sentia parecia vir dessa outra dimensão. Não era humana. Em um pensamento insano, o homem deu um pontapé na porta. O barulho despertou a atenção do vizinho, um senhor centenário que vivia sozinho na casinha humilde, ao lado.
Outro estrondo. E mais outro. E mais outro. Silêncio...
O gato estava no chão desacordado. O homem ensandecido, ensanguentado. Em um ataque de fúria desferiu, não dez, mas dezenas de golpes na cabeça do guardião sombrio. Via a boca do gato aberta cheia de dentes e sentia mais raiva ainda. O gato não emitia qualquer som e isso irritava ainda mais aquele homem consumido pelo furor.
Cansado de tanto golpear, o homem escorou-se na cantoneira do cubículo. Observou o gato agonizar e suspirar lentamente. Era uma punição justa e adequada, pensou. Mas não era para o pobre gato, certamente. Recuperadas as energias, sentiu caminhar pelo corpo todo o mais repugnante remorso. Tinha vergonha de sua condição humana. Sentou-se no chão e chorou como uma criança com suas razões para chorar.
Passados alguns minutos, o homem recobrou a consciência e refletiu sobre a razoabilidade de seu comportamento.
— Foi razoável? Esse era o questionamento em sua mente martelando como um cuitelinho.
O gato parecia protestar contra as maldades deste mundo tridimensional. Apesar dos inúmeros golpes sofridos, o bichano lutava pela vida. Tinha um enorme desejo de viver. Afinal, acreditava ter sete vidas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Estatuto

Estatudo da ADL em formato PDF. Clique aqui para visualizá-lo.